quarta-feira, 29 de outubro de 2014

ESPELHO

Quando me obrigam a ser uma outra coisa
Que não aquela outra, que é mesmo outra,
O sentimento duma intuição espontânea
(Escondida na sombra da outra que é nada…)
Que deixa de ser para a aparência da outra

Fica quieta,
Cala a tua voz, dizem-me,
Não podes falar…

De que vale a verdade
Ao desassossego da cruel realidade,
Não valho nada
Nem pedra e sal eu valho!
Sou apenas a Verdade…
Sei que o firmamento é inteiramente meu
E ainda…
Nas noites claras estrelas posso contar…
Não ergas o dedo, conta calada, dizem-me!
Serenamente, conto uma e mais uma e estrela outra,

À minha beira, sábios palradores, existências únicas!
Importantes figuras enquanto duram (…)
Neste mundo que se perde com gente dessa
Donde a Verdade não interessa!

De onde eu vim, antes de nascer, ouvi:
 -Que a fecundidade seria como uma cheia
A transbordar dum rio fulgente,
Que os homens seriam justos
Que a felicidade dos outros…,
                               Seria a sua felicidade plena!
Que o Amor seria tanto, como bagas de groselhas
Teria a Terra inteira!
Mas, a cheia tornou-se espantosamente perigosa
As groselhas não têm bagas,
A pureza das consciências .... são como as nuvens!

Ofélia Cabaço
2014-10-29


domingo, 12 de outubro de 2014

O Bolo de Arroz

De mãos dadas subiam a Rua da Arquinha
Avó e neta
A rua da padaria com cheiros a limão e canela
Bolos de arroz …
A avó oferecia um, quentinho, apetitoso
A neta agradecida aquecia sua alma
De doce e  d´amor…era tão bom!

Sim, como era bom, o bolo de arroz
Da padaria da Rua da Arquinha…

Manhã houve em que a menina estremunhada
Acordou com o “tom” das conversas na cozinha
Escutou: “não tenho dinheiro p´ra comprar o livro”,
Qual livro? Pensava a neta…
Só podia ser “ Mon Ami Pierrot”, paciência!
É novo, ninguém tem, não pode ser emprestado…

De novo subiram a Rua da Arquinha…a padaria,
Os bolos de arroz, os cheiros a limão e canela
A boca húmida, vontade e apetite….
Um nó na garganta a segurar uma lágrima,

Entraram na padaria e a neta disse:
Não, não me apetece, dói-me a barriga,
Não quero, mamã… o bolo de arroz!

E, como era bom, o bolo de arroz
Da padaria da Rua da Arquinha…


Ofélia Cabaço
2014-10-12

Obs: a neta chamava a avó de “mamã”




segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Templo

Sei que não sabeis quem sou,
Escutai:

Sou um lago no templo que havia em mim
Nadar nas suas águas é um mistério, só consigo
Balbuciar a minha dor às ninfas
Oiço sons e baladas dolorosas (…)
Debruço-me sobre aquele altar, queixoso,
Oiço a tua voz…
Hinos de tristeza e de ardor, ocultos
Na sepultura dum templo ido (…)
Pálida imagem onde me revejo, divago,
Nas lembranças dum reinado desfeito
Figuras adornadas de rosas e catos
Vagueiam nas águas do lago que sou,
Consumida, embriagada de ilusões,
Grito o teu nome….
Eco perdido… nas águas correndo,
Infortúnio é um condão que me assalta
E não se afasta,
Não sei o que há em mim, somente sei,
Que a tristeza me toma em seus braços
 Fiel, não me abandona….

É assim que eu sou, não levais a mal
O meu tormento…
Talvez eu seja uma douda que vive 
Um mundo errado,
Tão errado, quanto eu penso o Amor!

Ofélia Cabaço


2014-10-06

domingo, 5 de outubro de 2014

Como é a Vida?

A vida exige, enquanto posse,
O que não posso…
Um dia, já sem posse, nada posso
E ela, a vida, exige o improvável
Se ao menos a vida fosse amável
E me deixasse aonde eu possa,
Sem poder,
Ver e ouvir a chuva tão leve e mansa
Quanto breve será o meu respirar…
Chorarei quando sentir que o Sol é ténue
E não me aquece…
Que o vento passa e nada me segreda
Que as nascentes e os rios silenciaram
Que as folhas caem e quando renascem
Eu já cá não estou….
Não me deliciarei a tocá-las, não mais
Escutarei as cigarras nem o canto das aves
A vida vai deixar-me no silêncio dos silêncios
Desenharei no ar um jardim de açucenas,
Nas paredes, imaginarei uma floresta
Com tapete de hortenses desfolhadas

Nas longas noites ouvirei o mar
Vou comer cerejas e babar-me
Inventarei cheiros de framboesas,
Amoras e romãs, rezarei Ave-Marias,

Se a vida fosse amável, deixaria (...)

A vida carregada de idade vai ciciar
No meu ouvido coisas sem sentido
Certamente me dirá que sou uma deusa
Fingida a vida (…)
Que me dirá o que nunca disse
A vida é posse porque é tão só
Um empréstimo….


Ofélia Cabaço

2014-10-05 

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O Moinho de Papel...

Eram tardes de vento, muito vento,
Nos Invernos da minha ilha…

Naquela tarde santa, debruçada na janela,
Brinquei com um moinho de papel
O vento corria veloz e circundante
Foi na Rua dos Pinheiros…aquela tarde!
Na casa da avó Mariana que me dava abraços,
Cheirava rapé e bebia café…muito café
A rua estava deserta e o dia cinzento…
Eu brincava feliz com o moinho de papel
Não me cansava nunca…
A avó contava histórias e cozia a minha saia,
Que era plissada, com desenhos no peitilho
Encantava-me olhar para o portão vermelho
Em frente da casa da avó, era uma ilusão…
Era fascinante…mesmo ao lado do portão,
Sobre um muro alto e de pedra escura
Debruçavam-se criptomérias e cameleiras,
No ar havia cheiros de buxos e de laranjais
O moinho de papel girava e voltava a girar…
Entraram muitas meninas no portão vermelho
Tinham cabelos lindos, boca vermelha, e,
Vestidos de muitas cores, outros de organdi
As meninas entravam e não saíam (…)

Eu esperava e o moinho de papel girava…
Quase noite, a tia Hermínia chamava-nos
Havia feijão assado e doce de abóbora

A avó fechava a janela
O vento amainava
O moinho de papel adormecia…

Eu disse para a avó:
Gosto da Rua dos Pinheiros,
Não tem pinheiros e se chama assim? Perguntei
A luz do candeeiro era fraca,
Mas eu vi a bondade no rosto da avó Mariana
Que me explicou:
Nesta grande e bela ilha, há muitos anos,
Só cá habitavam pinheiros…
E depois? Insistia eu
-Os piratas fizeram canoas com a madeira
Dos pinheiros e depois, fugiram para longe,
Muito longe…
Quase a dormir perguntei à avó Mariana:
Porque não saem aquelas meninas do portão vermelho?
-Porque não têm casa, nem um colo como este!


Ofélia Cabaço
2014-10-03


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Existência da Coisa...


Na minha varanda há um vaso
Que é de barro e abriga uma planta
Há dias que a olho embevecida
Outros há, que me é indiferente
Eu sei que ela existe, e por existir
Suscita-me sensações…
Por isso, eu também existo
Não sei se a amo, ou,
Se a admiro, ou se a desejo…
Sei bem que não gostaria de olhar
Apenas o vaso…
Às vezes, ela é a minha alegria,
Outras, a minha tristeza (…)
Mas existe… e como existe, consigo
Admirá-la ou talvez não…
Sei bem que não gostaria de olhar
Apenas o vaso…


Ofélia Cabaço
2014-10-02



quarta-feira, 1 de outubro de 2014

As Estrelas Brilham...

Se tu amasses comigo:
O silêncio, as montanhas, os vales,
Os rios e a magia das tardes…
Ah quem me dera!
Conseguias fazer nascer em mim, a alegria,
Pensar que a minha felicidade será
Todos os dias e sempre, a tua felicidade!
Lenços brancos, nuvens alvas, limoeiros
E amendoeiras com flores perfeitas
Que me entontecem de aromas e desejos…
…tu e tu  e sempre tu, em cada pomar,
Em cada lugar da terra ou do cosmos
A nascer e a renascer, metamorfoses
Redentoras colorindo a tua existência;
Doida de desejos e cheiros inebriantes
Despi-me dos trajes negros, e vesti natureza;
Percorri caminho estreito…
Nem um ai ouvi, nem uma flor encontrei,
Somente fontes caladas, tapetes de ácer
Silêncio….
De ti, lembranças, sonhos e esperança
O pensamento de ti e uma vontade louca
De te amar, roía-me a alma…
Escuta: a floresta imensa não desconfiou
Do meu segredo (…), ninguém ouviu…
Ninguém sabe do que eu sei, e,
Do que tu sabes de mim,
Sentei-me no fim do agreste caminho
Olhei o firmamento azul, esperei…
E quando a noite chegou,
As estrelas brilharam para nós
E, eu ouvi o eco dos teus passos…

Ofélia Cabaço
2014-10-01