quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Memórias Açorianas



Graça era o nome de uma querida amiga e colega da escola. Vivíamos em S. Miguel Açores, mais propriamente na Fajã de Cima, éramos muito unidas.
Graça, naquele Verão tinha namoriscado um rapaz que viva na ilha Terceira, mas, tinha vindo passar as férias grandes (como nós chamávamos às férias de Verão), em S. Miguel. Era um bonito rapaz e muito conversador. Sem se dar conta, Graça encantou-se por ele, e, com toda a inocência dos treze anos, passou a sonhar platonicamente com um amor salpicado de borboletas trémulas que a impressionava vivamente.
Fomos algumas vezes aos arraiais do Senhor Espirito Santo, festividade sempre encantadora para nós, jovens, que gostávamos de conviver, dançar e passear à noite ao som das várias bandas de música que se fixavam nos coretos das respetivas Vilas ou Freguesias.
Nos bancos dos átrios das igrejas e nos jardins, com cadeiras pequeninas de abrir e fechar, vigiavam-nos os adultos. Nós tínhamos que, de meia em meia hora, passar pelos familiares e dizer “olá”, a fim de saberem como estávamos, aonde estávamos e o que fazíamos. Não custava nada fazer isso, só que desta feita, não podíamos ir para muito longe do arraial.
Víamos a procissão durante a tarde, íamos jantar e à noite voltávamos para gozar o arraial, as roqueiras, (foguetes), algodão doce, (se nos dessem dinheiro) e conviver um pouco, mas tudo dentro de um doentio secretismo.
Qualquer desconfiança era um resquício de paragem obrigatória e de irmos para casa dormir. Era fim de cena. Era doloroso para nós!
Mas, como eu ia contar, a minha amiga Graça, apaixonada encantada, com insaciável vontade de namoriscar (o que era tão próprio da nossa idade!) vivia aquele Verão com sublime alegria; as festas eram um misto de sonhos e confetes, balões, roqueiras, algodão doce, carrocéis e pouco mais. Devo realçar que apesar das dificuldades tão arreigadas, num tempo tão carente de quase tudo, nós sempre vestíamos vestidos novos com modelos muito bem arquitetados pelas costureiras, das quais, para mim, eram a minha avó e a tia Margarida que faziam os meus vestidos com desenhos a gosto meu, de feitios um pouco estranhos para os demais, que eu inventava, e elas, “às vezes” concordavam.
Essa coisa dos vestidos novos era outra euforia, combinávamos muitas vezes, cores e feitios de vestidos semelhantes.
Acabado o Verão, surgia o início das aulas e as despedidas; nós açorianos, sofremos imenso com despedidas, não fora somente a nostalgia das ilhas, nem tão só a sua limitação, mas sobretudo os afetos e o carinho que criávamos com todas as criaturas. Somos um povo de gigantes afetos. Afetos para a vida e para além da morte.
Um dia, na escola, Graça pediu-me para ajudar a redigir uma carta para o tal rapazinho, pois ele tinha-lhe escrito e ela tinha uma vontade imensa de lhe dizer o quanto estava apaixonada, assunto que ele nem sequer desconfiava. Combinamos naquela tarde, em casa, escrever-lhe e ditar tão nobres sentimentos. A pretexto de estudarmos, reunimo-nos em casa dela e antes de qualquer outra coisa, a prioridade era responder à dita carta. Claro que eu, dando largas à minha imaginação, comecei por explicar um sentimento excelso, que às vezes, sonhadoramente, eu conseguia idealizar. A Graça tinha-me contado, que a irmã mais velha tinha aberto a carta dele, e, tinha proibido aquela correspondência, pois tinha percebido toda aquela fantasia e até uma determinada nostalgia na sua irmã mais nova; aliás, no nosso tempo, tudo era proibido, até uma amizade simples e genuína com qualquer rapaz era considerada “maldade”, mas, aquele tipo de maldade estava na cabeça dos adultos e em especial nas mais frustradas mentes; pensando assim e dizendo o que sentia a respeito, levei muitas “taponas”.
Com o que a minha amiga me contara, resolvi explicar ao rapaz na carta, o acontecimento, a seguir a outras coisas, envoltas de uma imagem evocativa e romântica; ia eu na frase “…. quando a minha irmã abriu a carta fiquei petrificada de terror,….), naquele instante, por mera coincidência, a irmã da minha amiga entra na sala, percebe que estou a escrever uma carta, e  sabendo de antemão o tipo de imaginação que me ofereceu a natureza, arranca-me a carta da mão, lê e diz: o que é essa merda de petrificada de terror?
Assustada, apenas pequei nas minhas coisas, e pirei-me! Lá se foi um momento poderoso de explanar um quadro tão romântico quanto eu era capaz de momumentar.

Ofélia Cabaço

Sintra, 05-11-2014




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